Meio atrasado, publico dois textos dos melhores que li recentemente. João Pereira Coutinho e Rodrigo Constantino (links aí na coluna direita. Sim, direita, hehe..). Divirtam-se:
Dia da Consciência Individual - Rodrigo Constantino
Em homenagem aos 50 anos do mais famoso discurso de Martin Luther
King Jr., “Eu tive um sonho”, segue um artigo meu para o jornal O Globo
de 2009, publicado no Dia da Consciência Negra:
Dia da Consciência Individual
Cada indivíduo possui diversas características que ajudam a
identificá-lo, entre elas: crença religiosa, altura, classe social,
sexo, visão política, nacionalidade e cor da pele. O coletivista é
aquele que seleciona arbitrariamente alguma dessas características e a
coloca no topo absoluto da hierarquia de valores. Para o nacionalista, a
nacionalidade é a coisa mais relevante do mundo. Para o socialista, a
classe é tudo que importa. Para o racialista, a “raça” define quem
somos.
Todos eles ignoram a menor minoria de todas: o indivíduo.
Schopenhauer disse: “A individualidade sobrepuja em muito a
nacionalidade e, num determinado homem, aquela merece mil vezes mais
consideração do que esta”. De fato, parece estranho se identificar tanto
com alguém somente com base no local de nascimento. O mesmo pode ser
dito sobre a cor da pele. Deve um liberal negro ter mais afinidade com
um marxista negro do que com um liberal branco? Fica difícil justificar
isso.
Entretanto, o “Dia da Consciência Negra” apela exatamente para este
coletivismo. Consciência é algo individual; não existe uma “consciência
negra”. Compreende-se a luta contra o racismo, justamente uma forma de
coletivismo que deprecia um grupo de indivíduos por causa de sua cor.
Mas não creio ser uma boa estratégia de combate ao racismo enaltecer
exatamente aquilo que se pretende atacar: o conceito de “raça”. Um
mundo onde indivíduos são julgados por seu caráter, não pela cor da
pele, como sonhava Martin Luther King, não combina com um mundo que
celebra a consciência de uma “raça”.
A origem do feriado coloca mais lenha na fogueira. Zumbi dos
Palmares, ao que tudo indica, tinha escravos. Era a coisa mais natural
do mundo em sua época. Ele lutava, portanto, pela sua própria abolição,
não da escravidão em si. A humanidade conviveu com a escravidão desde
sempre. Diferentes conquistadores transformaram em escravos os
conquistados. Os gregos, romanos, incas, astecas, otomanos, todos
fizeram escravos. As principais religiões consideravam isso algo normal.
Não havia um critério racial para esta nefasta prática. Os próprios
africanos eram donos de escravos.
Somente o foco no indivíduo, com o advento do iluminismo,
possibilitou finalmente enterrar as correntes da escravidão. A
Declaração da Independência Americana seria a síntese desta nova
mentalidade. Os principais abolicionistas usaram suas poderosas palavras
como argumento definitivo contra a escravidão. No famoso caso Amistad,
em 1839, o ex-presidente John Quincy Adams fez uma defesa eloqüente dos
africanos presos: “No momento em que se chega à Declaração de
Independência e ao fato de que todo homem tem direito à vida e à
liberdade, um direito inalienável, este caso está decidido”.
O Brasil apresenta um agravante prático: a própria noção de “raça”.
Afinal, aqui predomina a mistura, como o recém-falecido Lévi-Strauss
percebeu em Tristes Trópicos. Para o antropólogo, ‘negro’ é um
termo que “não tem muito sentido num país onde a grande diversidade
racial, acompanhando-se de pouquíssimos preconceitos, pelo menos no
passado, possibilitou misturas de todo tipo”. Como celebrar a
“consciência negra” num país de mestiços, caboclos e cafuzos? Deve o
mulato priorizar uma parte de sua origem, em detrimento da outra? A mãe
negra é mais importante que o pai branco, ou vice-versa?
Eu gostaria muito de viver num país onde não houvesse racismo.
Infelizmente, acho que feriados que enaltecem a consciência da “raça”
não ajudam. Seria melhor criar o “Dia da Consciência Individual”.
Um Rei EM Washington - João Pereira Coutinho
Viajo para Washington. Encontro a cidade em festa. Não admira. Cinquenta
anos atrás, em 28 de agosto de 1963, Martin Luther King passou pela
capital e, na presença dos 250 mil manifestantes que fizeram a Marcha
sobre Washington, proferiu um dos discursos mais famosos do século 20.
Digo "famoso", mas infelizmente pouco lido. Pena. Relendo o discurso de
Luther King por estes dias, entendi melhor o talento e a eficácia do
homem na luta pelos direitos civis dos negros. Nada revela tão
claramente uma inteligência quanto as palavras que ela escolhe.
Para começar, o texto é uma peça notável de oratória cristã. O fato é
por vezes ignorado: Luther King foi sobretudo influenciado por Thoreau e
Gandhi, dizem os especialistas, e a sua estratégia de resistência não
violenta é tributária dos dois.
Certo, certíssimo. Mas, antes de Thoreau e Gandhi, recordo aos
especialistas que Luther King foi formado na adolescência pelo teólogo
Benjamin Mays, que incutiu no pupilo uma ideia revolucionária e simples:
se os ensinamentos da Bíblia não servem para mudar os homens, então a
Bíblia serve para muito pouco.
Luther King aprendeu a lição: primeiro, ao tornar-se também teólogo e
pastor batista no Alabama. E, depois, ao aplicar o arsenal teológico à
causa dos direitos civis.
A cadência e o vigor retórico de Luther King são próprios de um pastor em frente ao seu rebanho.
E o uso de metáforas --o sonho de que um dia um povo longamente
escravizado chegará a um oásis de liberdade e justiça-- também só é
possível em alguém que leu o Antigo Testamento e transpôs para a causa
dos direitos civis as provações épicas dos israelitas nos seus múltiplos
e trágicos exílios.
Mas a grandeza de Luther King não acaba aqui. Se o reverendo Luther King
fosse um "Muçulmano Negro", espumando de ódio contra o "homem branco",
talvez o discurso de 1963 fosse uma peça maniqueísta em que a luta pelos
direitos civis seria apenas uma luta de negros contra brancos.
Luther King nunca comprou essa primária versão dos fatos. Como o próprio
repetidamente afirmava, a luta não era entre negros e brancos. Era
entre a justiça e a injustiça, independentemente da cor das vítimas e
dos opressores.
Não é por acaso que, no discurso de 1963, o "sonho" de Luther King era
chegar ao dia em que brancos e negros se sentariam na mesma "mesa da
humanidade". Essa mensagem de "integração" seria impensável nas
diatribes separatistas e violentas de Malcolm X e da Nação do Islã.
O que não significa que o radicalismo dos "Muçulmanos Negros" não tenha
ajudado a causa de Luther King. Eis a terceira marca da sua
inteligência: apresentar a luta pelos direitos civis como a "via média"
entre dois extremismos gêmeos. O extremismo dos separatistas brancos. E o
extremismo dos separatistas negros.
Na sua "Letter from Birmingham Jail", escrita no presídio anos antes da
Marcha sobre Washington, Martin Luther King já era explícito na
condenação daqueles que "perderam a fé na América"; dos que "repudiaram o
cristianismo"; e dos que apresentam o homem branco como "um demônio
incorrigível".
Tradução: se a América desejava evitar uma guerra civil racial, garantir
direitos civis aos negros era melhor do que jogá-los na insurreição
armada.
Felizmente, a América escutou Martin Luther King, não Malcolm X. Em
1964, o Congresso aprovava o Civil Rights Act, infligindo o golpe de
misericórdia na segregação laboral, escolar, social. Os direitos
eleitorais plenos viriam logo a seguir, em 1965. E hoje?
Fato: como relembra o "Wall Street Journal", o rendimento das famílias
negras ainda representa 66% do rendimento das famílias brancas. Mas é
também importante lembrar que, há 50 anos, metade da população negra
vivia na pobreza. A cifra, hoje, ronda os 28%.
E, claro, escusado será dizer que, em 2013, a cor da Casa Branca não é mais branca.
Martin Luther King esteve na cidade em 1963 para imaginar o dia em que
os seres humanos não seriam julgados pela cor da pele, mas pelo seu
caráter.
Às vezes, as verdades mais antigas são as mais revolucionárias. E Luther
King era esse admirável paradoxo: um conservador revolucionário. São os
únicos revolucionários que eu respeito.
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Falando em estar atrasado, fiquem com a banda gaúcha "Bidê ou Balde" tocando a música do Marcelo Nova "Hoje", com participação do próprio Marceleza:
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O Vampiro de Curitiba
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